Cidadãos:
Desde a promulgação da Constituição Federal da República em
1998, o Estado Democrático de Direito Brasileiro vem sofrendo constantes
mutações. Nesse cenário, surgem a cada dia novos modelos de participação dos
particulares na administração da coisa pública, tais como as parcerias
público-privadas, as concessões administrativas, os consórcios públicos e as
entidades paraestatais.
Nos últimos anos, muito se tem discutido sobre a
participação complementar de entidades paraestatais sem fins lucrativos, tais
como as Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público (OSCIP), nos serviços de saúde pública, conforme permissivo
disposto no art. 199 da CF/88.
Isso porque, se tornou prática corriqueira no país a
transferência da gestão, operacionalização e execução dos serviços de saúde
pública para entidades privadas.
A grande discussão reside na inconstitucionalidade e
ilegalidade da transferência integral da saúde pública para essas entidades
privadas, na medida em que CF/88 e a Lei Orgânica da Saúde de n° 8.080/1990
autorizam apenas a sua transferência complementar:
Constituição Federal da República de 1998:
“Art. 30. Compete aos Municípios:
(...)
VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da
União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;” (BRASIL,
1998)
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (BRASIL, 1998)
“Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa
privada.
(,..)
§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma
complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante
contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades
filantrópicas e as sem fins lucrativos.” (BRASIL, 1998)
Lei 8.080/90:
“Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem
insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma
determinada área, o Sistema Único de Saúde-SUS poderá recorrer aos serviços
ofertados pela iniciativa privada.
Parágrafo único. A participação complementar dos serviços
privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a
respeito, as normas de direito púbico.” (BRASIL, 1990).
A Lei n° 8.080/1990 trata expressamente da
complementariedade da atuação da iniciativa privada nos serviços públicos de
saúde, nas hipóteses em que a estrutura pública for insuficiente a atender a
população de determinada região, vedando, por consequência, sua atuação de
forma substitutiva.
Entende-se por participação complementar a execução de
atividades classificadas como atividades-meio da administração pública, e não
daquelas classificadas como atividades-fim. Nesse contexto, o Estado poderia
delegar, por exemplo, a prestação de serviços técnicos especializados, tais
como mamografias, radiografias e exames clínicos, mas não poderia transferir a
gestão completa de um hospital ou unidade de atendimento a uma entidade
privada.
No entanto, não é isso o que vem ocorrendo no Brasil.
Diversos municípios, especialmente aqueles menores ou com baixa renda, vem
reiteradamente terceirizando os serviços de saúde às Organizações Sociais, cuja
atuação passa a ser integral e não complementar conforme autorizam a CF/88 e a
Lei n° 8.080/1990.
A transferência total da prestação dos serviços de saúde
pública a entidades privadas, além afrontar a Constituição Federal e a Lei
Orgânica da Saúde, ainda contraria os ditames da Lei n° 9.637/98, que dispõe
sobre a qualificação de entidades privadas como Organizações Sociais:
“Art.5 Para os efeitos desta Lei, entende-se por contrato de
gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada
como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para
fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1o.” (BRASIL,
1998).
Nos termos do referido dispositivo legal, resta claro que os
contratos de gestão devem ser firmados com vistas à formação de uma parceria da
Organização Social com o Poder Público, e não objetivando a substituição do
Estado em suas atividades-fim.
Ademais, a transferência integral dos serviços de saúde
pública para as entidades privadas ainda esbarra em outra
inconstitucionalidade: burla à realização de concurso público para a
contratação dos profissionais da saúde, em total afronta ao disposto no artigo
37, caput e inciso II, da CF/1988.
Nos termos da Carta Magna, o ingresso em cargo ou função
pública, seja na administração pública direta ou indireta, depende de prévia aprovação em concurso de provas ou de provas e títulos, excetuando-se à regra
apenas os casos de contratação para os cargos em comissão, que são preenchidos
por livre nomeação e exclusivos para as atribuições de direção, chefia e
assessoramento.
Entretanto, a contratação dos profissionais de saúde pelas
entidades privadas que possuem a gestão e execução integral da saúde pública em
diversos municípios não vem observando a regra constitucional mencionada acima.
Diante disso, entidades de defesa do cidadão e de profissionais da saúde vem, reiteradamente manejando ações judiciais visando a suspensão e interrupção dos contratos celebrados com pessoas jurídicas de
direito privado e que tenham como objeto a terceirização dos serviços públicos
de saúde, em decorrência da corriqueira contratação de profissionais da área sem realização de concurso público.
Um caso emblemático nesse cenário é o Mandado de Segurança de n° 2000.001.048041-8, impetrado pelo Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro
em face do Secretário Municipal de Saúde. Na exordial, o Sindicato alegou que a Secretaria Municipal de Saúde publicou edital de licitação para contratar
entidades privadas para executarem atividades-fim do Município nas Unidades
Auxiliares de Cuidados Privados (UACPC), contratação essa que afrontaria ao
art. 37, inciso II, da Constituição Federal da República em razão do ingresso
de profissionais em cargo público sem a realização prévia de concurso.
A sentença proferida julgou procedentes os pedidos do
Sindicato e declarou a ilegalidade do ato administrativo, determinando a anulação da licitação que culminou na contratação de uma Cooperativa para a
prestação dos serviços públicos de saúde no Município. O Município do Rio de
Janeiro recorreu da sentença, mas o Tribunal de Justiça manteve a decisão e
afirmou que o serviço de saúde pública é essencial e não pode ser terceirizado.
Veja-se, abaixo, trecho do acórdão proferido:
“O serviço público de saúde não pode, e não deve, ser
terceirizado, admitindo o art.197 da Constituição Federal, em caráter
complementar, permitir a execução dos serviços através de terceiros. O caráter complementar não pode significar a transferência do serviço à pessoa jurídica
de direito privado.” (AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 445.167 RIO DE JANEIRO
RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO 28/08/2012 DJe 19/09/2012)
Em face do referido acórdão o Município do Rio de Janeiro
interpôs Recurso Especial e Recurso Extraordinário. O Recurso Especial teve
seguimento negado. Da mesma forma, o Relator Ministro Carlos Ayres Brito negou seguimento ao Recurso Extraordinário, destacando que a regra das contratações é o concurso público:
“A administração pública direta e indireta, ao prover seus
cargos e empregos públicos, deve obediência à regra do concurso público.
Admitem-se somente duas exceções, previstas constitucionalmente, quais sejam as
nomeações para cargo em comissão e a contratação destinada ao atendimento de
necessidade temporária e excepcional.” (RE 445167 RJ RELATOR CARLOS AYRES BRITO
JULGAMENTO 18/12/2009 PUBILCADO DJe 026 DIVULG 10/02/2010 PUBLIC 11/02/2010)
O Município do Rio de Janeiro ainda interpôs Agravo
Regimental contra a decisão que negou seguimento ao Recurso Extraordinário, ao
qual o Ministro Relator Cezar Peluso negou seguimento ao fundamento de ser
entendimento da Corte a impossibilidade da prestação de serviços públicos por
profissionais não concursados:
“[...] os cargos inerentes aos serviços de saúde, prestados
dentro de órgãos públicos, por ter a característica de permanência e ser de
natureza previsível, devem ser atribuídos a servidores admitidos por concurso
público, pena de desvirtuamento dos comandos constitucionais referidos.
[...] é certo que o texto constitucional faculta, ao Estado,
a possibilidade de recorrer aos serviços privados para dar cobertura
assistencial à população, observando-se, as normas de direito público e o caráter complementar, a eles inerentes. Todavia, não é essa a discussão aqui travada,
mas sim, a forma como a Municipalidade concretizou o ato administrativo, emprestando-lhe característica de contratação temporária, desvirtuada do fim
pretendido pelo artigo 197 da CF/88. Na hipótese, os serviços contratados não podem ser prestados em órgãos públicos, onde necessariamente, deveriam
trabalhar profissionais da área de saúde, aprovados em concurso público, a teor
do artigo 37, II, da CF/88 (fls. 422/423).” (AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
445.167 RIO DE JANEIRO, RELATOR MIN. CEZAR PELUSO, 28/08/2012 DJe 19/09/2012)
Seguindo a linha do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, outras entidades propuseram ações contra a terceirização do serviço público de
saúde.
É claro que essas transferências realizadas pelo Poder
Público, além de não permitida pelo ordenamento pátrio, caracteriza burla à
forma legal de ingresso de servidores no serviço público de saúde, qual seja, o
concurso público, o que infringe gravemente o artigo 37, caput e incisos II e
IX da Constituição Federal.
Neste sentido, o Poder Judiciário tem respondido a tais
ações de forma unânime, ratificando o que dispõe a legislação pátria: a saúde é
dever do Estado e não pode ser terceirizada à iniciativa privada.
BIBLIOGRAFIA
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República
Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 168p.
BRASIL. Lei n° 8.142, 28 dez. 1990. Dispõe sobre a
participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as
transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e
dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 31 dez. 1990.
BRASIL. Lei n°8.080, 19 set. 1990. Dispõe sobre as condições
para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento
dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União,
Brasília, 20 set. 1990.
BRASIL. Lei n°9.63715 mai. 1998. Dispõe sobre a qualificação
de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de
Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de
suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, 18 mai.1998.
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Relator para Acórdão: Min. Eros Grau. Diário de Justiça 21 set 2007.
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2012.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 445167 .Relator :
Carlos Ayres Brito. Diário de Justiça 11 fev 2010.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito
Administrativo, 22.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2012.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração
Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas 4. ed.
São Paulo: Atlas, 2002. p. 186.
MATO GROSSO. Tribunal de Justiça do Mato Grosso. Ação Civil
Pública de n° 5081.43.2011.4.01.3600. Juíza Célia Regina Ody Bernardes. Mato
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito
Administrativo. 22ª Ed. Malheiros. São Paulo. 2006. Pg.271.
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ação
Cautelar Inominada 023.12.043764-6. Juiz Luiz Antonio Zanini Fornerolli. Santa
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1 Ação Civil Pública n° 5081.43.2011.4.01.3600, proposta
pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de Mato Grosso – CRM/MT em face da
terceirização dos serviços de saúde pública executados no Hospital
Metropolitano de Várzea Grande.
Ação Civil Pública n° 023.12.0526-0 – Tribunal de Justiça de
Santa Catarina – liminar para suspender o cumprimento e execução do Contrato de
Gestão n° 02/2012, firmado com Organização Social, para gerenciamento,
operacionalização e execução das atividades e serviços de atendimento do
Serviço Móvel de Urgência (SAMU) de Santa Catarina.
Ação Civil Pública n° 1228/2011 – Tribunal Regional do
Trabalho da Paraíba – Declaração de ilegalidade da terceirização do serviço
público de saúde no Hospital de Trauma.
Carolina Alves Chagas Pianetti - Advogada.
Antes de considerarmos este 'breve' amparo legal para tratarmos dos hercúleos esforços da Prefeitura de nossa cidade para aprovar em votação na Câmara de Vereadores o compromisso com as OSs, devemos nos perguntar se, mesmo com uma provável legalidade da decisão de aprovar a terceirização irrestrita em episódio ainda recente, é isso que realmente queremos para a Saúde em nosso município. Não sei se a lei aprovada nos últimos meses desfaz todos esses exemplos supra-citados, pois não sou Advogado.
Gostaria de contar com amigos da área do Direito para que pudessem me explicar melhor e, se possível, auxiliar numa eventual tomada de ação frente ao Ministério Público, para uma tomada de decisão mais responsável sobre este assunto, tão importante, aliás, essencial para a saúde dos moradores de nossa cidade. Fico no aguardo para contato e esclarecimentos.
E como já afirmei no começo do ano: É hora de aprendermos a usar o sistema contra o sistema.
Então, quem puder ajudar...